sábado, janeiro 13, 2007

As urgências médicas em Portugal

Artigo do Prof. José Manuel Silva*

Excluindo os cada vez mais raros dias de relativa acalmia, amiúde aprocura da Urgência dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC)ultrapassa amplamente a sua capacidade de resposta com eficiência. No espaçocentral da Urgência, que foi dimensionado para 17 macas, é frequente estaro dobro, o triplo, ou mais, de doentes!Como especialista em Medicina Interna, estive de serviço à Urgência dosHUC no passado dia 26 de Dezembro, das 9 às 21 horas. Nesse dia, das zeroàs 24 horas, 604 doentes recorreram à Urgência (incluindo a maternidade)!Na Urgência do Bloco Central, durante o dia, foram admitidos quase 50doentes por hora! Um verdadeiro mar de gente, que provocou atrasosinaceitáveis, logo para a realização da primeira triagem, e muitas horas deespera para os doentes menos urgentes.Não é possível responder com atenção, humanidade, acuidade e qualidade atantos doentes, com as mais variadas queixas, patologias e necessidades.O espaço físico não comporta esta quantidade e os recursos humanos etécnicos, sobretudo os primeiros, são claramente insuficientes nas horas demaior sufoco.Em dias de maior enchente não há condições para observar os doentes, nemmacas suficientes para os deitar! Interrogamos um doente e estão váriosa escutar a conversa! Observamos outro doente e somos acompanhadospelo olhar atento de uns quantos! Queremos auscultar um coração mas o ruídode fundo parece o de uma discoteca! Necessitamos de medir a tensão arteriale temosde ir, em verdadeira gincana entre cadeiras e macas, buscar umaparelho que, muitas vezes, existe em número insuficiente! Palpamosabdómens com doentes sentados porque não há um local apropriado para osdeitar! Queremos concentrar-nos nos problemas de um doente e está outro aclamar para que o despachemos! É necessária uma glicemia capilar mas, nomeio da confusão, já ninguém sabe onde está a máquina! É importanteadministrar um medicamento ou colher sangue para análises, mas osenfermeiros estão todos sobreocupados!É preciso transportar um doente à ecografia, mas não háauxiliares disponíveis! Chega um doente grave e está outro a gritar por umurinol! Os telefones tocam por informações (por vezes, sobre o mesmo doente,são inúmeros telefonemas!) ao mesmo tempo que os doentes (os quefalam) solicitam assistência! Tão depressa um doente está em risco deaspirar um vómito quanto é necessário acorrer a um doente desorientado àbeira de se atirar da maca abaixo! Os frascos de soro de 100 cc esgotaram,pelo que énecessário desperdiçar mais tempo a preparar diluições com frascos de500 cc! Etc., etc., etc...

Carta ao director clínico

Em Agosto de 2006 escrevi ao director clínico dos HUC uma carta, da qual transcrevo o seguinte excerto: «O dia 22 de Agosto foi um dia deenorme afluência de doentes à Urgência dos HUC, o que implicou umtrabalho profundamente absorvente e desgastante. O mal desenhado espaço daUrgência (para o tipo de urgência hospitalar que ocorre em Portugal) maisparecia uma feira, com ruído, confusão, gritos, ordens, maus cheiros, faltade privacidade, calor, chamamentos, lamentos, doentes em terceirafila, stress, pessoal subdimensionado, etc. Os exageros da triagem deManchester e os conselhos do ministro da Saúde para que os doentes recorramàs urgências hospitalares vieram piorar o frágil desequilíbrio anterior.Como dizia um colega ortopedista, quando sentia a agitação no seu sector daUrgência como demasiada vinha apreciar a babilónia da sala de Medicina, oque lhe permitia regressar mais animado e reconfortado à Ortopedia».

É completamente impossível trabalhar com qualidade desta maneira. Para bem dos doentes, como profissionais de saúde tentamos cumprir a nossaobrigação o melhor que podemos e sabemos, mas, como um dos porta-vozes dosmédicos, não posso deixar de denunciar que, ao sermos compelidos atrabalhar nestas condições, seguramente que não podemos evitar alguns errosque, de forma alguma, podem vir a ser imputados à responsabilidade médica.

Denunciar nas instâncias apropriadas


É no cumprimento do parecer do Conselho Nacional do Exercício Técnico deMedicina, da Ordem dos Médicos, sobre Recursos Humanos no Serviçode Urgência, que escrevo estas linhas. Efectivamente, segundo esseparecer, «os médicos devem denunciar, nas instâncias apropriadas, a faltade recursos técnicos e/ou humanos para o exercício da sua actividade comdignidade esegurança para os seus doentes, não poderão, no entanto,declinar responsabilidades do que ocorrer durante este exercício deactividade, em nome das ditas insuficiências. Porém, na Constituição daRepública, no ponto 2 do art.º 271.º, afirma-se: "É excluída aresponsabilidade do funcionário ou agente que actue no cumprimento de ordensou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria deserviço, se previamente delas tiver reclamado ou tiver exigido a suatransmissão ou confirmação por escrito"».

Infelizmente, os problemas que aponto à urgência dos HUC, apenas porque osvivo intensamente cada vez que estou de serviço, são extensíveis amuitos outros hospitais, senão a todos eles. Durante o mesmo período, 540doentes recorreram ao Serviço de Urgência do Hospital de Aveiro, um hospitalcom muito menos recursos e que está a rebentar de problemas de gestão! Nodia1 de Janeiro a Urgência do Santa Maria foi um caos total, conformevem referenciado na comunicação social. Não é possível continuar assim!Declinar responsabilidades Por tudo isto, em meu nome pessoal e em nome dos médicos, ao abrigo do art.º271.º da Constituição, venho reclamar das condições em que somos obrigadosa trabalhar e declinar quaisquer responsabilidades pelos erros que possamser cometidos em situações de sobrecarga de doentes nos serviços deUrgência de qualquer instituição de saúde.

Quem fecha serviços de atendimento permanente nos centros de saúdesem alternativas efectivas, quem pretende encerrar serviços de Urgênciasem uma reforma profunda do sistema de Saúde, quem desorganiza serviçosde Urgência com a contratação de empresas de mão-de-obra médica desligadada respectiva instituição, quem não cuida de criar mecanismos de assistênciaaos idosos que dispensem o recurso sistemático à Urgência hospitalar, quemnão investe a sério em verdadeiros cuidados paliativos, quem se preocupamais com o orçamento do que com os doentes, quem não tem conhecimentosuficiente para introduzir reformais racionais e não racionamento cego, quemnão dimensiona os recursos técnicos e humanos de forma dinâmica em funçãodasnecessidades, quem não resolve os constrangimentos ao fluxo de doentes, quemconcede populares tolerâncias de ponto sem cuidar de mecanismos decompensação e rotatividade (só para as greves é necessário assegurarserviços mínimos?), etc., etc., etc., quem governa deficientemente que assuma integralmente as suas responsabilidades!

Basta! Não é justo nem aceitável que os médicos possam ser responsabilizados pelas inevitáveis consequências negativas edesnecessários riscos e prejuízos para os doentes que decorrem dos cortesirracionais e dos erros e insuficiências de gestão e organização dosresponsáveis governamentais e seus representantes, e da falta de condiçõesadequadas para a prática deuma Medicina humanizada e eficiente.É profundamente lamentável estar a perder-se mais uma oportunidade para umaverdadeira, global e coerente reforma do Serviço Nacional de Saúde.

*Presidente do Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos

Subtítulos e destaques da responsabilidade da RedacçãoTempo Medicina ONLINE de 2007.01.03

0701ANT4F0107JMA01D

Sem comentários: