quarta-feira, janeiro 23, 2008

Diário da Missão a Tombali - 2ºGrupo

Pois é! Após o regresso do primeiro grupo a Portugal (António, Filipe e João), o projecto U' anan (vertente Saúde) continua a desenrolar-se em terras guineenses, agora com mais três protagonistas (Zélder, Heldão e o Micles).

Recebemos há dias um primeiro relato do que encontraram em Iemberém e do trabalho que têm levado a cabo. Relato do qual deixo aqui algumas partes, já que o Micles não o pôde fazer já que a net em Bissau, pasmem-se, têm uma velocidade inferior à netcabo.

Quanto a nós, resta-nos desejar-lhes continuação de um bom trabalho! Força amigos! Nós já morremos de saudades da Guiné! E de vocês também!ehehe

Após 6 meses de espera e depois da ansiedade consequente aos relatos do grupo anterior, chegámos finalmente a Bissau(...)

(...)Ainda no aeroporto de Lisboa tivemos o primeiro percalço, quando uma operadora da TAP (perdoem-me se não é esta a designação correcta, não sei se existe qualquer outro nome pomposo que defina quem faz aquela complexa tarefa) plena de simpatia desde o primeiro minuto de atendimento, nos cobrou 120€ por pouco mais de 4 kg de bagagem em excesso por cada um de nós…ainda tentámos explicar que eram medicamentos e outro material de cariz humanitário para distribuir por aldeias dos interior do país, mas a distinta senhora, revelando uma flexibilidade ao nível dos caixas do Mcdonalds e um coração do tamanho do mundo, passou-nos a guia para pagarmos o excesso de bagagem. Sem mais problemas, seguimos o nosso percurso até ao embarque (...)

(...) Às 3 horas da tarde (a mesma hora que em Portugal continental) chegámos finalmente a Bissau. Depois de uma meia hora de espera para a verificação dos passaportes, dirigimo-nos para o único tapete rolante do aeroporto a fim de recolhermos a nossa pesada bagagem (...)

(...) Após mais meia hora de espera e com dois carrinhos cheios, dirigimo-nos para a saída destinada a diplomatas, o único local onde a bagagem não é aberta, onde o Jiby explicou que nós éramos médikús com medicamenta pra tratá du mininú (perdoem-me eventuais erros, mas ainda estou a aperfeiçoar o meu crioulo). Após a inspecção dos caixotes por parte de 3 polícias, foi autorizada a nossa saída sem que as bagagens fossem abertas (...)

(...) Sob o sol tórrido ficamos fascinados com toda a cor daquele caos organizado. A terra é vermelha e a berma da estrada entre o aeroporto e Bissau é preenchida por coloridas tendas de vendedores. A estrada não é marcada e as buzinadelas são constantes, sejam para avisar os peões que abordam a berma da estrada com o intuito de a atravessarem ou os veículos que à frente ocupam a sua faixa virtual. À medida que nos aproximamos do centro da cidade o trânsito intesifica-se e as “lojas” junto à estrada são cada vez mais diversas e em maior quantidade. À nossa volta circulam sobretudo táxis, todos eles Mercedes 190D azuis, e toca-toca pejados de gente. Já em pleno centro de Bissau, cruza em sentido contrário um autocarro dos STCP (Serviço de Transportes Colectivos do Porto) – Rui Rio, se por qualquer eventualidade estiveres a ler, experimenta enviar os camiões do lixo devolvidos por Maputo aqui para Bissau, pode ser que desta vez eles aceitem (...)

(...) Partimos entusiasmados à descoberta de Bissau. A parte central da cidade é composta por muitas paralelas e transversais, uma cidade feita a regra e esquadro onde apenas as ruas principais são alcatroadas. As casas estão quase todas decrépitas e remontam, na sua maioria, ao tempo colonial, excepção feita às embaixadas e aos edifícios onde funcionam órgãos do governo, locais “sagrados” aos quais nem nos é permitido fotografar. Entre os numerosos táxis e toca-toca e para além de algumas motorizadas, todas elas conduzidas sem capacete, passam volta e meia, e contrastando com a extrema pobreza, Jipes Hammer e BMW X5 que mais tarde viemos a saber pertencerem a traficantes de droga e a alguns altos responsáveis do estado (...)

(...) Já tinha caído a noite quando regressámos à pensão da D. Berta. Este era o único edifício da rua que aparentemente tinha luz eléctrica. No caminho do mercado à pensão tínhamos visto mais uns quantos, mas não muitos… Bissau à noite vive mergulhada na escuridão, os quase inexistentes postes de luz estão apagados e são muito poucas as casas que têm gerador próprio. Disseram-nos que, de vez em quando havia luz da rede pública, por enquanto ainda não tivemos a oportunidade de o constatar.
A pensão da D. Berta é um ícone de Bissau, arrisco-me até a dizer do próprio país. A D. Berta, ou avó Berta como também lhe chamam, é uma senhora Cabo-verdiana de 83 anos que chegou a Bissau ainda na década de 40 por ter casado com um guineense. Era o marido o proprietário da pensão, mas após a sua morte ficou ela a responsável máxima e desde então, ainda que não seja essa a designação oficial do estabelecimento, quem vem a Bissau fica na D. Berta. O edifício ilustra a minha interpretação de algumas descrições de Hemingway da Cuba de outros tempos. O próprio clima quente e abafado e o sorriso na cara envelhecida da D. Berta sentada nas traseiras do balcão que circunda todo o edifício remonta-nos para outros tempos. Todos os dias o almoço e o jantar são servidos da mesma forma que o eram ainda na era colonial. Sopa, um prato de carne, outro de peixe e a sobremesa. O cliente escolhe apenas o que quer beber e sabe tão bem uma Cristal fresquinha neste calor tropical… (...)

(...) rumámos a sul. A viagem de Bissau a Iemberém (quartel general da nossa missão) dura, em média, 5 horas, sendo que num terço da duração da viagem se percorrem dois terços do percurso. O que custa é a última parte, toda ela em esburacadíssimas estradas de terra onde só a destreza do Antero nos permite chegar a bom porto (...)

(...) À medida que rumávamos para sul a floresta ia-se adensando e a temperatura tornava-se mais amena. Já na parte sinuosa da viagem passámos por inúmeras tabancas (aldeias) onde crianças à porta de palhotas nos acenavam com um largo sorriso nos lábios. Já muito perto de Iemberém o Antero parou para cumprimentar um amigo. Era um agricultor conhecido da AD que quando soube que éramos médikús nos arranjou logo meia dúzia de enfermos para observarmos. A maior parte deles tinham pequenas escoriações fruto de ligeiros acidentes de trabalho e limitámo-nos a dizer que não era nada. Por fim, falou-nos a mulher dele. Tinha muitas dores de estômago (algo que é frequente por estas bandas) as queixas dela eram compatíveis com uma úlcera gástrica e decidi dar-lhe 3 comprimidos meus de pantoprazol (para os leigos, um fármaco que inibe a produção de ácido no estômago) dizendo-lhe para tomar dia sim, dia não. Uma semana depois, ao passarmos novamente por essa tabanca a senhora veio ter comigo sorridente, a dizer que não tinha voltado a ter dor e que queria mais comprimidos, algo que infelizmente não lhe pude dar (...)

(...)Chegámos finalmente a Iemberém. Os nossos aposentos, um verdadeiro luxo para os padrões de qualquer tabanca guineense, consistem num quarto com 3 camas sob as respectivas redes mosquiteiras, uma sala de trabalho e um quarto-de-banho com não mais de 4 m2 , onde temos uma retrete com o autoclismo avariado, um poliban com um chuveiro fixo e sem cortina e um lavatório. De referir que tanto o chuveiro como o lavatório têm apenas uma torneira, a da água fria. Se pensarmos que na capital, Bissau, não há água canalizada da rede pública, e que mesmo na D. Berta toda a higiene era feita “ao balde”, o facto de aqui a termos (não pública, vem directamente do poço da AD) torna aquilo que em Portugal seria considerado um pardieiro infecto, no verdadeiro Sheraton de Iemberém. Estes luxuosos aposentos são partilhados por todo um ecossistema que começa na “formiguinha” que desconhece em absoluto as escalas biológicas (custa-me até um pouco chamar formiga a este insecto, tal é o tamanho do bicho) e acaba no morcego que vive sobre o tecto falso e que contribui para que o ecossistema não seja ainda mais rico em artrópodes (...)

(...)E se estamos alojados como reis, comemos como príncipes, pelo menos tendo em conta que temos um prato para cada um de nós, um garfo e uma faca, algo estranho para a maior parte dos guineenses, que comem todos da mesma panela, cada um com a sua colher. A ementa é fácil de decorar – Galinha do campo com arroz tipo trinca de cão por uns módicos 1500 Francos CFA (qualquer coisa como 2,25€). Isto ao almoço e ao jantar durante as duas semanas!!! Eu até gosto de frango, mas todos os dias!!!? Qualquer dia nascem-me as asas… (...)

(...) Quando aqui chegamos questionamos até a necessidade de tanto “desenvolvimento”, vemos as crianças felizes a brincar, os homens sorridentes e as mulheres distraídas nos seus afazeres diários e passa-nos pela cabeça questionar quem está certo, se nós, se eles. Mas depois aparecem-nos crianças com doenças facilmente tratadas por medicamentos que em Portugal estão ao virar da esquina, outras com limitações físicas graves consequentes a deformações congénitas não corrigidas. Visitamos “hospitais” de tabancas centrais, os poucos locais onde por estas bandas se conseguem encontrar enfermeiros (médicos, nem vê-los) e, ao fazer o inventário do material, constatamos que não têm literalmente nada (...)

(...) A primeira semana foi bastante trabalhosa. Saíamos cedo de Iemberém e chegávamos, muitas vezes, já o sol se tinha posto. O nosso trabalho consiste em visitar escolas, unidades locais de saúde e matronas (parteiras). Nas escolas desparasitamos as crianças com mebendazol (um anti-helmíntico, mata as “bichas” , as “lombrigas”, etc.) procuramos um parasita na bexiga (Schistosoma) fazendo as crianças correr, saltar e pular durante uns 3 min. recolhendo depois análises de urina vendo se têm ou não sangue, se tiverem, damos outro medicamento. Para além disto oferecemos uns cadernos de desenho elaborados por nós e que contêm mensagens de saúde base importantes ( saberem-se resguardar dos mosquitos de forma a evitar a malária, defecar e urinar nas latrinas, ter cuidados de higiene, etc.), medimos ainda os níveis de hemoglobina capilar a uma percentagem de alunos e oferecemos material escolar que adquirimos pessoalmente em Portugal (lápis, lápis-de-cor, giz (obrigado João), apara-lápis e, para gáudio de todos, por vezes ao som de um forte aplauso, uma bola de futebol (...)

(...) A maior parte das escolas que visitamos são comunitárias, ou seja, são erguidas e geridas pela aldeia, pois o estado ainda não as presenteou com uma, limitando-se a destacar professores aos quais não paga. A formação dos professores é a mais pragmática possível, alguém que tem a 2ª classe pode ensinar a 1ª, alguém que tem a 3ª pode ensinar a 2ª e por aí em diante. Antes de vir, ao informar-me sobre a Guiné, li algures que a percentagem de população que falava a língua oficial do país, a portuguesa, era cerca de 10%, vejo agora que é uma percentagem bastante optimista e percebo facilmente porquê. Ainda que nas escolas as lições sejam escritas em português, os professores falam com os alunos em crioulo e alguns deles (a esmagadora maioria, se exceptuarmos os professores efectivos do estado) nem sabem a língua, é como se a nossa professora de inglês do 5 ao 11º ano não compreendesse ou falasse a língua que escrevia no quadro (...)

(...) À noite, em Iemberém, demos seguimento às aulas de alfabetização de algumas crianças e adultos iniciadas pelo grupo anterior, somos, de longe, as pessoas mais habilitadas a fazer tal coisa neste sector(...)

(...)ficámos sem carro à nossa disposição. Estava portanto na altura de utilizarmos as bicicletas adquiridas aquando da estadia em Bissau. Descobrimos então o conceito made in china e mounted in Guiné-Bissau, uma mistura verdadeiramente explosiva no que diz respeito à robustez(...)

(...) No caminho para Bissau, onde passaremos este fim-de-semana, e ao som da música do meu leitor de Mp3, observo a estrada em terra vermelha, as termiteiras que nascem como castelos por entre a erva alta e, aqui e ali, mais uma tabanca . Ao passar-mos por algumas mais desenvolvidas, vem novamente o rodopio desenfreado de quem quer vender tudo a toda a gente…Laranjas, mancarra, gasóleo, vinho de palma…volto a ver a terra vermelha, as palmeiras, a erva alta..é fácil imaginar que foi aqui que nasceu a humanidade (ainda que actualmente hajam já indícios contrários)…
Agora, de novo em Bissau, duas semanas após a chegada e no nosso único regresso à capital antes do inerente ao regresso a Portugal, inúmeros episódios se me afiguram à medida que escrevo, mas ao olhar para o canto inferior esquerdo vejo que vou já em 7 páginas…


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